Santo Agostinho e a pandemia
01.10.2020 - 05:00:00 | 6 minutos de leitura
|Frei Sérgio Peres de Paula | Brasil | O mundo passa um momento muito delicado: a pandemia do COVID-19. Diante desse problema que afeta a todos, cabe indagar: qual é a relevância da obra de Santo Agostinho para esse momento? Penso que alguns elementos da Carta 130, que escreveu Agostinho a Proba, podem nos conceder algumas pistas.
O epistolário agostiniano é formado por cerca de 270 cartas, algumas delas dirigidas a mulheres. A destinatária da Carta 130 é Faltônia Proba, mulher de família nobre, rica e influente da “Gens Anícia”, esposa de Probus, que recebera o título de “eterno prefeito de Roma” e fora cônsul no ano 371. A família era cristã recentemente convertida, e Proba era uma típica matrona romana.
O pano de fundo da Carta 130 é o saque de Roma, perpetrado, a partir da noite de 24 de agosto de 410, pelos godos chefiados por Alarico. Fora uma cobrança de dívida do imperador a “preço de ouro”. Os saques visaram, sobretudo, as famílias nobres e poderosas. Como muitos godos eram cristãos, geralmente arianos, eles preservaram incólumes à violência os que se refugiaram nas igrejas. Entre estes que buscaram asilo e proteção nas igrejas estavam Proba e sua família. Durante três dias seguidos, os cidadãos romanos viveram o terror de saques, agressões físicas, estupros generalizados e muitos suicídios, mormente de mulheres violentadas.
O ocorrido provocou uma situação de “Thauma”[1] em todo o império. Instaurou-se uma insegurança e incerteza quanto ao presente e ao futuro do mundo romano. O saque revelou a fragilidade do império; precipitou e acelerou uma desintegração das estruturas institucionais políticas e militares, econômicas e comerciais. Gradativamente, o império romano tornou-se incapaz da manutenção das fronteiras e da contenção da violência interna e externa. É notável que, a partir desse evento, o pensamento de Agostinho assume uma ênfase mais escatológica.
Em busca de segurança, Proba e sua família decidiram morar em Cartago, e lá conheceram o Bispo de Hipona. A matrona havia decidido fazer de sua casa uma espécie de “mosteiro”. Já com fama de “santo bispo”, ela lhe escreveu uma carta pedindo orientações sobre a oração e a vida espiritual. A Carta 130 é uma resposta do teólogo e filósofo Agostinho à solicitação de Proba.
Organizada em 16 capítulos, a oração e a vida espiritual são os temas centrais da carta, mas ste artigo dará ênfase apenas aos capítulos 1 e 2. Nas passagens em exame, toda a abordagem de Agostinho se volta para a situação concreta de Proba: a viúva que perdera seu filho recentemente, experimentara as ameaças e o terror do saque em Roma e, por este motivo, buscava refúgio no norte da África.
Agostinho se dirige a Proba dizendo que a situação do cristão no mundo é semelhante à da viúva desolata (desamparada), que experimenta uma nostalgia dos “bens eternos” e não se prende aos bens passageiros deste mundo. Aqui, as riquezas não garantem uma plena segurança, ou seja, vive-se a incerteza das riquezas. Por si só, elas não tornam o ser humano melhor e ainda geram o medo da pobreza, das perdas afetivas, da dor corporal, do desterro. Tal medo só encontra alívio naqueles que compartilham os mesmos sentimentos e situações.
Um tema recorrente nos escritos de Agostinho, e que aparece na Carta a Proba, é o valor da amizade. Diz o Bispo a Proba: “Qualquer que seja a sua situação, o homem não pode considerar a vida amiga, se não tiver outro como amigo”[2]. No entanto, experimenta-se a insegurança até mesmo nas amizades: há amigos que procedem mal, o que mostra a incerteza e insegurança quanto às intenções humanas. Amigos agem, às vezes, com fraude, dolo, ira, discórdia e traição. Assim, nem nas amizades existe segurança total.
A condição humana neste mundo, segundo Agostinho, é de solidão e desolação: “Viste que esta vida é moribunda, por mais consolos humanos que a rodeiem, por muitos companheiros de caminhada que se tenha, por toda abundância de bens que acumule. Bem sabes quão incertas são todas essas coisas que deleitam”[3].
Nessa parte introdutória da Carta, Agostinho conclui que só há plena segurança na vida eterna. Portanto, a vida é cheia de surpresas e contingências. É justamente essa percepção da existência que aproxima o hiponense de nós, aturdidos pela pandemia do COVID-19.
Ao afirmar esta vida como “vida moribunda”, Agostinho nos remete à questão da morte como condição e possibilidade da existência humana. Porém, a morte é um tabu para o homem contemporâneo, como bem destacou Elisabeth Kubler-Ross (1926-2004), há cerca de cinquenta anos, em sua obra “A morte e o morrer”: “tabu moderno da morte” aponta para as formas modernas de negação e banalização da morte.
Com a pandemia, a humanidade está novamente diante de duas ameaças arquetípicas que nos fazem confrontar a possibilidade da morte: a doença em larga escala, antes chamada de peste, e a fome como consequência possível da peste e das medidas de combate a ela. Sentimentos paradoxais foram suscitados e provocados em relação a várias instâncias da vida moderna, antes sob considerável sentimento de segurança: as ciências, a economia, os meios de informação e os órgãos políticos em nível mundial – como a ONU e, nela, a OMS.
A pandemia revela os limites temporais e humanos: de maneira sórdida quanto ao uso da medicina e da ciência para respaldar medidas e prescrições sanitárias duvidosas; nos planejamentos e medidas sanitárias, com superfaturamentos e desvios de recursos públicos direcionados ao combate sob diversas formas; em relação à situação delicada dos mais pobres e autônomos, sem outros recursos para sobreviver senão pelo trabalho diário; e na guerra de informação e desinformação nos meios de comunicação, tanto tradicionais como nas novas mídias digitais.
A partir da introdução da Carta 130, o pensamento agostiniano nos faz pensar que, apesar de nossa condição “moribunda” e de não termos garantias de que os projetos humanos podem nos levar à plenitude da felicidade, ainda assim, todos os recursos disponíveis existem em prol da busca de uma vida qualitativamente melhor. Encarando com esperança os limites da existência humana temporal, é possível viver a “solidariedade” (amizade) nos bens e sofrer juntos nos males, como alívio na dor e no sofrimento. Sem isso, a perversidade humana produz seus frutos e torna a vida humana ainda mais frágil e amarga.
Fonte
AGOSTINHO, Santo. Cartas a Proba e Juliana. 2ª ed. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1987.
[1] ‘Thauma”, do termo grego taumázein (θαυμάζειν): assombro, espanto, pasmo.
[2] Santo AGOSTINHO. Carta 130 a Proba, II, 4.
[3] Ibidem, cap. II, 5
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